Desde quando foi lançado, no começo do mês de março de 2023, o enredo do Acadêmicos do Salgueiro para o carnaval de 2024 chamou muita atenção. Naquele momento, o país acompanhava, incrédulo, à tragédia que acometia o povo Yanomami, com imagens fortíssimas de crianças subnutridas, contrastando com a opulência da floresta onde vivem.
Com Hutukara, o Salgueiro firmou posição sobre o tema e, já no início, o enredo foi apresentado como um manifesto. Em julho, quando começou o concurso para a escolha do samba-enredo, a perspectiva de manifesto se reafirmou, com a vitória de um samba que traz de forma bastante explícita a nuance política da luta dos Yanomami. Existiam samba com outros vieses na disputa e a escola optou por esse, que foi também aclamado pelo público desde o início da disputa.
Mas o manifesto do Salgueiro pretende ir além do significado mais óbvio e formal da palavra. Desde que começou a formular esse enredo em conjunto com lideranças do povo Yanomami, a Academia do Samba entendeu que o povo Yanomami é muito mais do que a tragédia que nós, os não-indígenas, estamos acostumamos a ver na mídia. A tragédia, inclusive, é muito mais nossa do que deles. Afinal de contas, tudo ia bem por lá até a chegada dos garimpeiros, especialmente nos anos 1970, onde essa prática foi incentivada pelo governo ditatorial militar de plantão.
Em seu desfile, o Salgueiro pretende exaltar a beleza e a cultura Yanomami. Para tal, a escola fez uma pesquisa profunda, diversas conversas com lideranças da terra indígena, tentando que o desfile tenha o protagonismo Yanomami e não seja apenas uma homenagem. A promessa é de um desfile sem clichês. O enredo pesquisado e escrito por Igor Ricardo, que vai ter desenvolvimento plástico do carnavalesco Edson Pereira, foi supervisionado pelo xamã Davi Kopenawa.
Especificidade e sustentabilidade
É dele, em parceria com Bruce Albert, um dos livros-base para o enredo: A queda do céu (Companhia das Letras). Nele, a trajetória de Kopenawa é retratada a partir da vocação dele para xamã desde pequeno, é feito um relato do avanço dos invasores não-indígenas nas terras Yanomami e também de toda sua luta para fazer essa denúncia no Brasil e no exterior. Além desse livro, o trabalho da fotógrafa Claudia Andujar, pioneira na luta pela criação de uma área indígena Yanomami, também foi inspiração para o trabalho de pesquisa e elaboração.
Uma das preocupações da escola é que este não seja um desfile sobre “indígenas”. Todo o trabalho da agremiação vem visando fazer um desfile Yanomami. Mesmo quando o desfile abordar a tragédia a qual estão submetidos, isso será feito na ótica deles; as máquinas do garimpo serão bichos monstruosos, que comem os minérios, tal qual os Yanomami descrevem a questão.
Para ser coerente com tudo isso, o Salgueiro não levará um carnaval brilhante e/ou luxuoso para a avenida. A escola vai priorizar materiais naturais, como palha, e técnicas artesanais, como o macramê, e fez um grande reaproveitamento de materiais antigos do barracão. A ideia é ter uma estética e uma prática coerente com a sustentabilidade característica dos Yanomami.
Desde que a temática indígena chegou na Sapucaí, ainda tímida, lá nos anos 1980, o que vimos na maioria das vezes foram desfiles que tratavam os povos indígenas como algo monolítico, como se fossem todos a “mesma coisa”. Já vimos desfile sobre lenda indígena do Rio de Janeiro com fantasias que faziam referência a povos indígenas do Centro-Oeste. O Salgueiro pretende ir além disso: fazer um desfile com protagonismo indígena, desde o discurso até a estética.
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Foto do cabeçalho
Detalhe de alegoria do desfile Hutukara no barracão do Salgueiro. Divulgação/G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro
Teia Critica Carnaval 2024
Para a Teia de Carnaval/Dobras da Folia, a Caju mantém a parceria com o Laboratório de Arte e Estudos da Alteridade (LAPA), do Instituto de Artes da Uerj. Bernardo Pilotto é doutorando da universidade, onde pesquisa compositores de samba-enredo.
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Sociólogo. É responsável pela página Carnavalicia e escreve de forma bissexta no Portal Esquerda Online e no blog Vida Carioca.
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