“Era um homem que cabia um abismo dentro de si”. Quem diz isso sobre Lampião é o ex-cangaceiro Zé Gato, aos 92 anos, no livro Memórias sangradas, de Ricardo Beliel e Luciana Nabuco. A Imperatriz Leopoldinense foi campeã do carnaval carioca em 2023 desfilando sobre esse abismo. Como bala certeira de atirador tarimbado, ricocheteou pela avenida, nos estandartes da ala representando o cordel, uma pergunta sem resposta: “Lampião, herói ou vilão?”. O abismo enunciado por Zé Gato se desenha entre esses dois pólos. Um caminho quase impossível, mas que foi percorrido com desenvoltura pelo corpo coletivo da escola de Ramos. A partir do enredo de Leandro Vieira, a Imperatriz desdobrou na avenida os vincos de uma biografia assombrada, a saga imaginária de um herói (e anti-herói) tecida a partir dos cordéis de autores como José Pacheco, Guaipuan Vieira, Rodolfo Cavalcante e Frederico Pernambucano de Melo. Um desfile que falou da resistência de Lampião como imagem e como discurso na memória coletiva dos brasileiros.
Lampião não cabe nem no inferno e nem no céu, porque é sertão – e ele está em toda parte, como nos ensinou o jagunço-filósofo de Guimarães Rosa. O cangaceiro segue vagueando porque não pode ancorar em lugar algum, é uma história em aberto, ainda contada e recontada toda vez que os signos estéticos e narrativos associados a ele recobrem outras criaturas. Como o enredo de Leandro Vieira sugere, Lampião é, tal qual Diadorim, um estado de “neblina”. Ao longo dos anos, precipitou-se como chuva e florou mandacarus em artistas e obras que se apresentaram ao mundo como nordestinos.
Lampião é uma imagem em trânsito, e sua saga entre os “confins do submundo” e as portas celestiais de São Pedro permitiu com que Leandro Vieira criasse aviões, balões e canhões de homem-bala, através dos quais o personagem viajou e se projetou sobre a avenida, com o carnavalesco voltando a investir numa visualidade circense, lúdica, que tem os dois pés fincados no repertório da cultura popular brasileira. Não parece ter sido acaso que o artista, sempre afeito à desconstrução de elementos clássicos das fantasias do carnaval de avenida e de rua, tenha criado para este desfile três alas com burrinhas.
O burrico foi um vetor para demonstrar a um personagem perambulando, sua circulação por vários mundos. O enveredar do enredo pelo fantástico pode ser identificado pelas transformações desse elemento “cavalgado”. Se, logo depois de morrer, A chegada de Lampião ao inferno se dá em um burrico clássico, criado como uma cerâmica de Vitalino clownesca, os trânsitos pelo inferno e pelo céu já assumem uma atmosfera entre o pesadelo e o sonho. No andar de baixo, comandado pelo “excomungado”, a Tropa de expulsão que toca o cangaceiro para fora monta esqueletos calcinados. Já na Subida de Lampião ao céu, o cangaceiro pega carona em um pássaro azul e usa um chapéu com a imagem de São João para chegar às portas de São Pedro. A figura de São João menino, recorrente nos enredos de Leandro, aparece ainda numa escultura, no belo elemento alegórico em que o jagunço interrompe o café da tarde de Pedro. Este, enfurecido, convoca outros santos para expulsar Lampião dali.
Com a passagem pela avenida deste segmento do céu, o público das arquibancadas, capaz de apreender o desfile com uma visão de cima (a melhor possível no Sambódromo), recebeu um presente. As alas posicionadas à frente e atrás da quarta alegoria – a do céu circense com aviões e balões – mostraram com muito lirismo a importância de se pensar o desfile em seu conjunto, como um “tapete” de texturas e de cor em que as fantasias “vestem” os carros. Estes, por sua vez, podem “escorrer” para o chão, isso é, se comunicar diretamente com o que está abaixo deles. Tanto a ala dos romeiros com Padre Cícero quanto a ala Assombração – uma ousada representação de carranca, envolta no lusco-fusco de um véu ou mortalha – vinham em tons de branco, ora com elementos brilhantes, ora com tecidos quase transparentes. Isso criou fronteiras para a alegoria do céu que eram manchas brancas difusas.
Na frente, o conjunto de fantasias irradiava pequenas centelhas de prata; atrás, o outro figurino tirava partido do espectral para criar evanescência. As carrancas cobertas eram totens presos aos ombros dos componentes, projetados muito além de suas cabeças. Com a variação de altura dos desfilantes, sua evolução ao longo da avenida e o ver-e-não-ver das carrancas embaixo do véu, a ala parecia uma faixa rugosa e oscilante, cujas partes subiam e desciam logo atrás dos balões e aviões. Tanto atrás quanto na frente, o branco tinha o poder de “suspender” a alegoria: os conhecimentos óticos mostram que as faixas longas de luz da cor branca fazem com que ela se expanda, pareça estar além do plano que ocupa. Com isso, as alas brancas que envolviam o carro, mais claras e mais expansivas que as muitas cores que agitavam a alegoria, tinham o poder de fazer com que acreditássemos que os aviões e balões da Imperatriz estavam de fato flutuando e singrando as nuvens.
Mamulengos marcam fronteira da ficção
Vieram das fantasias e dos carros alegóricos – o melhor conjunto apresentado pelo artista em sua trajetória como carnavalesco – os elementos que atestam para o público a transição entre o Lampião biográfico e o ficcional. Ele apareceu no abre-alas representado por esculturas realistas e foi encenado no início do desfile como um cangaceiro de carne e osso, fugindo da polícia com seu bando e invadindo a Sapucaí como se ela fosse um povoado. Na segunda alegoria, Dia 28 sob o olhar de um mamulengo (comentado na Revista Caju em ensaio de Pedro Ernesto Freitas Lima – leia clicando aqui), aconteceu a travessia para a ficção, para o cangaceiro imaginário dos cordéis e de inúmeras outras manifestações artísticas.
Leandro escolheu narrar a morte de Lampião e seu grupo já como um teatro de mamulengos, evidenciando que, a partir desse ponto do desfile, deveríamos nos despedir do homem ambíguo, que oscilou entre o justiceiro social e o mais cruel dos bandidos, para abraçar um personagem composto pelas marcas que ele deixou na cultura e na arte. A partir desse ponto do desfile, o hiperrealismo cedeu lugar ao boneco e à metáfora, com a teatralização duplicando o coeficiente alegórico do carro (alegoria sobre a alegoria). Essa sobreposição apareceu ainda nas alas que desfilaram antes e depois do carro. No Teatro de mamulengos, vimos os componentes carregando bonecos de Lampião e Maria Bonita, destacando-os como brinquedo. As “fantasias de boneco”, em que o componente desfila acompanhado por esse amigo-adereço, são muito presentes nos desfiles de Leandro (este ano, a ala sobre Padre Cícero também tinha essa configuração). Tal recorrência se deve à sua presença no carnaval de rua, uma das maiores fontes de alimento para a criatividade do artista. A Ala dos Compositores vinha depois da alegoria, vestida de cordel e homenageando José Pacheco. Uma dobra que sobrepôs as matrizes do enredo com o próprio desfile, promovendo o encontro entre os poetas e músicos da Imperatriz e os cordelistas e repentistas.
Lampião é movimento que vagueia, mas também um curto-circuito, engasgo, talho na carne, ruído que recusa o estereótipo do Nordeste como região fraca e desvalida. Mais do que isso: sua saga é a de alguém que reivindicou viver longe da escassez, e pensou menos território e mais direção (“Belo porque uma porta abrindo-se em mais saídas”, cantaria o poeta de vidas severinas). Seu Nordeste não se resigna com a seca e a fome, com o papel de assistido; ele é o protagonista que quer se enfeitar e se perfumar para o baile, plantar e ver crescer sonhos ainda mais lindos que a cama feita de tiras de couro almejada por Nhá Vitória em Vidas secas, publicado no mesmo ano da morte de Lampião. A retirante de Graciliano Ramos poderia ser, aliás, uma irmã ou prima inconformada do cangaceiro.
Inconformar-se. Vem daí, do fato de não ser isso e nem aquilo, o poder que Lampião ainda tem de não caber nas respostas definitivas. Ele não consegue se fixar nas caixinhas de herói ou vilão porque é inconformado. Esta é a chave para que possa ser narrado, como escolheu Leandro, como um personagem histórico que roça as “bordas da ficção”, e assim consegue se amalgamar a outros seres, criando a pele de memória imagética que revestiu o chapéu de Luiz Gonzaga, os seres de barro de Vitalino, a poesia de Patativa do Assaré. Antes do desfile, Lampião pôde ser ainda aquele que deu ânimo e anima para a Imperatriz. A partir de seu enredo, a agremiação resgatou laços identitários com sua vizinhança, conectando-se com o Complexo do Alemão e a Maré, especialmente a partir de uma conexão com o imenso contingente de nordestinos e seus descendentes nessas comunidades.
Fagulhas de Lampião em múltiplas encarnações
Leandro enxergou no jagunço o mesmo abismo visto por seu ex-companheiro Zé Gato, entendendo Lampião menos como biografia e mais como horizonte. Ele se dispôs a cerzir um desfile com essa linha utópica, e criou uma obra metalinguística, espécie de cordel dos cordéis, com a figura do protagonista fragmentada por diversos intérpretes ao longo do cortejo. Espalhar fagulhas do cangaceiro da comissão de frente à última alegoria revelou-se um acerto, porque transmitiu, na visualidade e na performance, a ideia de que a Imperatriz era um campo de sertão onde de fato Lampião poderia vaguear, atiçando brasas vindas do corpo da escola.
Dentre as múltiplas encarnações do enredo, foi tiro no alvo a presença, já no abre-alas, dos atores Regina Casé e Matheus Natchtergaele como o casal Maria Bonita e Lampião. A imagem de Regina, uma das maiores atrizes e comunicadoras brasileiras, conecta Maria Bonita a duas grandes personagens de sua trajetória recente, ambas trabalhadoras domésticas: o fenômeno Dona Lurdes, da novela Amor de mãe (2020-21), e a Val de Que horas ela volta? (2015), filme de Anna Muylaert que é fundamental para entender o Brasil recente – da revolta com a PEC das Domésticas e a política de cotas até o golpe que desaguaria na eleição de um ex-presidente totalitário. Val e Lurdes trazem Maria Bonita para a esperança com o país de agora, quando mães nordestinas como elas três, muitas delas residentes no Alemão e nos arredores de Ramos, podem voltar a sonhar com um futuro próximo em que seus filhos estejam na universidade e suas famílias viajem de avião.
Já Natchtergaele, colosso de nossa dramaturgia, é um paulistano que deu vida a inúmeros nordestinos, em especial ao João Grilo da versão televisiva d’O Auto da Compadecida (1999). O espírito inconformado de Lampião encontra morada em toda a obra de Ariano Suassuna, e, no Auto, percorre boa parte dos personagens, não apenas os mais óbvios, como o “capitão” Severino de Aracaju (vivido por Marco Nanini na versão dirigida por Guel Arraes). Por outro lado, ecos de Suassuna, da visualidade do Armorial e da obra onírica de artistas visuais ligados ao movimento, como Gilvan Samico, também habitaram como muita força o desfile da Imperatriz, o que se identifica facilmente nas padronagens de estampas criadas por Leandro para as fantasias (da bateria, das baianas e outras alas) e também para os personagens encarnados pelo segundo casal de mestre-sala e porta-bandeira da escola. O primeiro casal, formado por Raphaela Theodoro e Phelipe Lemos, deu vida a Maria Bonita e Lampião, enquanto Larissa Vitória e Marcus Ferreira fizeram o bailado entre a Onça Caetana, bela imagem da morte na obra de Suassuna, e o Cão, um dos muitos nomes com que se chama o capeta. O diabo e a morte dançaram juntos em suas feições metafóricas, alegóricas; e, mais uma vez, estamos falando de imagens em trânsito.
A dupla de fantasias do segundo casal foi um dos pontos mais altos do impactante segmento do inferno, no qual Leandro compensou a saturação cromática de laranjas, vermelhos, cinzas e pretos usando tecidos transparentes na alegoria (para simular as chamas) e em fantasias, que receberam ainda estampas florais e gráficas. No figurino da já citada Tropa de expulsão, por exemplo, foi notável o trabalho de estamparia nas mangas bufantes translúcidas, além das várias texturas vindas de sobreposições e materiais distintos.
Ainda nesse segmento, chamou a atenção outra marca do artista. Voltou a ser vista, na ala Tocou fogo no inferno (e também na fantasia Paisagem sertaneja, representando os mandacarus do início do desfile) a utilização de canudinhos feitos de tule para dar volumetria a golas e costados. O mesmo recurso foi usado, por exemplo, na ala sobre o sol, no segmento dedicado a Cartola do desfile Angenor, José e Laurindo, na Mangueira, em 2022.
Na Imperatriz, como de resto em todos os desfiles de Leandro, a paleta opaca (ou fosca, como definiu bem o comentarista – e pensador – Milton Cunha durante a transmissão televisiva) não permite distrações. Ela conduz a atenção para o desenho, para o trabalho cromático (o de cada roupa e os das alas formando o “tapete” na avenida), para as inúmeras texturas que destacam o trabalho artesanal. Ainda sobre esta arte que é fantasiar pessoas, é importante destacar a ala de baianas montada pelo ateliê de Tia Sirley (vista em imagem abaixo), costureira que é parceira de Leandro desde que ele assinou seu primeiro carnaval, na Caprichosos de Pilares, em 2015.
Ao lembrar as mulheres do cangaço, como Dadá, companheira de Corisco, as baianas encarnaram a “cangaceira escola” do samba e mostraram muito do vocabulário estético de Leandro. A saia balonê (com tecido duplo, dobrado, formando um balão) e as cartucheiras estampadas com flores e geometrias vindas do Armorial; o vestido de algodãozinho simples em azul claro; os babados na barra da saia e mangas bufantes feitos com um tecido vazado e estampado com poás, em tom de creme; o pesponto aparente em vermelho nesses babados creme.
Muito do que é escondido em outros barracões aqui está à mostra: pespontos, vieses e ilhoses são utilizados pelo artista e seus parceiros de costura e adereçamento como informação visual. O pesponto vermelho da saia, por exemplo, é uma linha a mais de cor a marcar todo o figurino, chamando atenção para o “fim” da saia com o fio vermelho contrastante em seu acabamento. Se não há o que o senso comum aprendeu a chamar de “luxo” – pelo custo dos materiais -, há uma sofisticadíssima arquitetura volumétrica com tecidos e aviamentos, que exige muito de quem desenha e projeta, e mais ainda dos grandes artistas responsáveis pela execução. Há, também, a partir das sobreposições de tecidos e estampas, a transformação de uma fantasia projetada como pintura e desenho em algo tátil, com os diversos materiais ampliando as sensações e a sinestesia.
Bordando vidas pelas bordas
De volta aos muitos Lampiões da Imperatriz, na torcida para que alguns leitores e leitoras tenham chegado até aqui, é preciso lembrar que dois artistas cruciais para o campeonato da escola encarnaram lindamente o protagonista do enredo. O intérprete Pitty Menezes, voz carismática do samba que seria capaz de cantar qualquer coisa que quisesse; e Mestre Lolo. A autora deste texto não se arriscaria a comentar a bateria de uma escola de samba, mesmo que seu ouvido de leiga perceba a ousada oscilação de afinação que Lolo dá aos instrumentos. Permite-se, no entanto, a registrar a sua performance à frente de seus bravos ritmistas, um bando de Lampião que abria e fechava o desfile, invadindo a Sapucaí como uma tropa carnavalizada, aguerrida e bem vestida.
As imagens que mostram Lolo regendo seus companheiros, em especial o pequeno conjunto que fazia a intervenção de xaxado no samba enredo, já são históricas. E deixam para o futuro a certeza de que, se o excelente enredo de Leandro não tivesse sido abraçado pela bateria e pelo samba, dificilmente a escola de Ramos teria chegado onde chegou. Lolo é o Lampião mais poderoso que a Imperatriz poderia ter, e reitera a importância de um resgate identitário que a escola conseguiu realizar a partir da criação dessa espécie de caleidoscópio do enredo, com os fragmentos ficcionais de Lampião espalhados por seu corpo coletivo.
Leandro tem sido muito bem sucedido em enredos nos quais percebe os valores ancestrais e estruturais de uma agremiação e se aproxima deles com uma proposta através da qual vai bordando uma vida pelas bordas. Em 2016, ele foi campeão reaproximando a Mangueira da Bahia, tão importante na história da verde-e-rosa, espécie de talismã do qual a dupla Annik Salmon e Guilherme Estêvão lançou mão no explosivo desfile mangueirense deste ano. Na estreia de Leandro, a Mangueira cantou Maria Bethânia através de sua religiosidade sincrética, dos saberes do Recôncavo, das gambiarras dos parques de diversão e das flores de andor de Santo Amaro. Bethânia foi apresentada menos como a genial intérprete, mais como a filha de Dona Canô, uma mulher cuja caminhada em público foi sempre espelho para que nos enxergássemos mais bonitos e mais fortes quando envoltos por aquilo que é nosso.
Clara homenagem a Rosa Magalhães
Em 2022, com o enredo Mangangá, o artista propôs que o Império Serrano narrasse a saga do capoeirista Besouro, cuja existência, como lembrou Maurício Barros de Castro em texto para a Caju (leia aqui), foi comprovada apenas muitos anos depois que sua saga já era recontada pelos cantos de capoeira e pelo samba de roda. Besouro foi metáfora perfeita para a história do Império, história fundada pela resistência e a insubordinação dos estivadores da região portuária, mas firmada no assentamento da pedreira de Xangô da Serrinha, sob as bênçãos de Vovó Maria Joanna Rezadeira. Ao reconhecer a escola de Madureira como um corpo de luta e um corpo fechado pela mandinga, o carnavalesco virou seu espelho para valores que os imperianos já conheciam, e que pareciam esquecidos pela escola naquele momento. E assim pôde imantar com o espírito de Besouro cada segmento do desfile. Com os retalhos de tecidos das estampas especialmente criadas para as fantasias de orixás, criou a roupa das baianas da escola, dando a elas o papel do caleidoscópio de que estamos falando. Como sua roupa feita de pedaços de outras narrativas visuais, as baianas apareciam como guardiãs de todas as histórias sobre Besouro ou, mais precisamente, sobre todos os Besouros que o Império poderia cantar. Os mesmo tecidos revestiram ainda a coroa-símbolo da escola, alegoria que foi fantasiada por Leandro para o desfile e se conectou ainda mais ao enredo quando perdeu a cruz cristã em seu topo, ganhando no lugar uma escultura afro.
A Imperatriz também vestiu-se de Lampião, e a última alegoria, trazendo a filha do cangaceiro, Expedita Ferreira, foi ainda um retorno para o real. O homenageado deixa de ser mamulengo, personagem de circo e figura de cordel para voltar a ser representado a partir da verossimilhança de uma escultura figurativa. Depois de levar o cangaço para o universo lírico e delirante, o desfile reassentou seu protagonista na Coroa de Ramos, sob as bênçãos de sua herdeira.
Como Besouro, no Império, Lampião foi um manto cobrindo todos leopoldinenses e, para que ele caísse perfeitamente bem, Leandro mais uma vez reconheceu o chão em que estava pisando. A escolha do Nordeste não foi apenas uma conexão possível com o território do Alemão e os arredores de Ramos. A história da Imperatriz é cheia de enredos sobre a região, em especial os de Rosa Magalhães, e o título rocambolesco O aperreio do cabra que o excomungado tratou com má-querença e o santíssimo não deu guarida é clara homenagem aos nomes quilométricos e bem humorados inventados pela “professora”. Todo o desfile, aliás, conversa com o legado literário dessa imensa artista, que levou tantas viagens e exílios para a avenida. Leandro olha para esta herança com o reconhecimento devido aos que vieram antes. E com a coragem de quem sabe que a maior prova de respeito ao passado da Imperatriz é desenhar para ela novas imagens que inventem o futuro.
Créditos das imagens sem legenda:
CABEÇALHO: Rafael Catarcione
ALA VITALINO: Diego Mendes/ RioCarnaval
“ASSOMBRAÇÃO”, TIA SIRLEY (com filme analógico) e BAIANAS: Tiago Morena/Sambacine
“PADRE CÍCERO” – Diego Mendes/ RioCarnaval
CARRO CÉU E “TAPETES” DE ALAS NO DESFILE – Léo Queiroz/RioCarnaval
MESTRE-SALA E PORTA BANDEIRA – Phelipe e Raphaela: Vitor Melo/RioCarnaval
MESTRE-SALA E PORTA-BANDEIRA – Marcus e Larissa: Diego Mendes/RioCarnaval
CROQUIS: Reproduções dos originais de Leandro Vieira/ Livro Abre-Alas Liesa
ARIANO SUASSUNA: Acervo Galeria Base
Referências:
BELIEL, Ricardo; NABUCO, Luciana. Memórias sangradas. Rio de Janeiro: Editora Olhares, 2021.
CABRAL DE MELO NETO, João. Morte e vida severina. São Paulo: Alfaguara, 2007 (1955).
GUIMARÃES ROSA, João. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006 (1956).
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 1993 (1938).
RANCIÈRE, Jacques. Guimarães Rosa: ficção à beira do nada. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2021.
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